Como devemos usar da presente vida e seus recursos

28/12/2018 21:09

1. Para evitar a severidade ou a intemperança é necessário uma doutrina acerca dos usos e dos costumes terrenos

            Com esta mesma lição a Escritura nos instrui muito bem acerca do reto uso dos bens temporais; coisa que certamente não devemos ter por pouca quando se trata de ordenar devidamente nossa maneira de viver. Porque se temos de viver, é também necessário que nos sirvamos dos meios próprios para isso. E nem sequer podemos abster-nos daquelas coisas que parecem melhor adptadas para proporcionar satisfação, que para remediar uma necessidade. Temos, pois, de ter uma medida, a fim de usá-la com pura e sã consciência, ora sendo por necesssidade ou por deleite.

            Esta medida nos diz o Senhor quando nos ensina que a vida presente é uma espécie de peregrinação para os seus mediante a qual se encaminham ao reino dos céus. Se é preciso que passemos pela terra, não há dúvida que devemos usar dos bens da terra na medida em que ajudam a avançar em nossa carreira e não lhe sirvam de obstáculo. Por isto, não é sem motivo que adverte Paulo que usemos deste mundo, como se não usássemos dele; que adquiramos posses com o mesmo ânimo como se as vendêssemos: “...e os que se utilizam do mundo, como se dele não usassem, porque a aparência deste mundo passa.” (I Coríntios 7:31). Mas como esta matéria pode degenerar em escrúpulos, e há perigo de cair em um extremo ou outro, procuremos firmar bem o pé para que não escorreguemos.

            Existiram alguns, por sua vez bons e santos, que vendo que a intemperança dos homens desata-se como renda solta se não for refreada com severidade, e desejando por remédio a tremendo mal, não permitiram aos homens o uso dos bens temporais, exceto enquanto o exigia a necessidade, pela qual decidiram porque não viam outra solução. Evidentemente este conselho procedia de um bom desejo; mas pecaram por serem excessivamente rigorosos. Sua determinação era muito perigosa, já que apertavam a consciência muito mais rigorosamente do que requeria a Palavra de Deus. Com efeito afirmavam que façamos conforme a necessidade quando nos abstemos de todas aquelas coisas sem as quais podemos passar. Segundo isto, apenas nos seria lícito nos mantermos somente de pão e água. Em alguns a austeridade vai mais além, segundo se conta de Crates de Tebas, quem lançou suas riquezas ao mar, pensando que se não as destruísse, elas haveriam de destruí-lo.

            Pelo contrário são muitos os que nos dias de hoje, buscando qualquer pretexto para desculpar sua intemperança e demasia no uso destas coisas externas, e poder deixar que a carne se espraie a seu prazer, afirmam como coisa certa, que de nenhum modo lhes concedo, que a liberdade não se deve limitar por regras de nenhuma classe, e que há que permitir que cada um use das coisas segundo sua consciência e conforme lhe pareça lícito.

            Admito que não devamos, nem podemos, por regras fixas na consciência com respeito a isto. Entretanto, como a Escritura nos dá regras gerais sobre seu uso legítimo, Por quê este não vai regular-se por elas?

2. Devemos usar de todas as coisas segundo o fim para o qual Deus as criou

            O primeiro ponto que temos que sustentar quanto a isto é que o uso dos dons de Deus não está desassociado quando visa o fim para o qual Deus os criou e ordenou, já que Ele os criou para o bem, e não para nosso dano. Portanto ninguém caminhará mais corretamente que quem, com diligência, observa este fim.

            Pois bem se considerarmos o fim para o qual Deus criou os alimentos veremos que não somente quis prover nossa nutrição, como também levou em conta nosso prazer e satisfação; Assim também em relação as vestes além da necessidade, pesou no decoro e na honestidade. Na relva, nas árvores, nas frutas, além da utilidade que nos proporcionam, quis alegrar nossos olhos com sua formosura, considerando também a suavidade de seu odor. Se assim não fosse, o profeta não cantaria entre as benfeitorias de Deus, que “o vinho alegra o coração do homem” e “o azeite faz brilhar o rosto”. “Fazes crescer a relva para os animais e as plantas, para o serviço do homem, de sorte que da terra tire o seu pão, o vinho, que alegra o coração do homem, o azeite, que lhe dá brilho ao rosto, e o alimento, que lhe sustém as forças.” (Salmos 104:14-15). Nem a Escritura, para engrandecer sua benignidade, mencionaria a cada passo que Ele deu todas estas coisas aos homens. As mesmas propriedades naturais das coisas mostram claramente a maneira como temos que usá-las, o fim e a medida.

            Pensemos que o Senhor deu tal formosura às flores, que espontaneamente se oferecem a vista; e um odor tão suave que penetra os sentidos, se não nos for lícito recrear-nos com sua beleza e perfume? Não diferenciou as cores umas das outras de modo que a uma nos agrada mais que a outra? Não deu uma graça particular ao ouro, a prata, ao marfim e ao mármore com que os fez mais preciosos e de maior estima que o resto dos metais e das pedras? Não nos tem dado, finalmente, inumeráveis coisas que temos que ter em grande estima, sem que nos sejam necessárias?

3. Quatro regras

            Prescindamos, pois, daquela filosofia desumana que não concede ao homem mais uso das criaturas de Deus que o estritamente necessário, e nos priva sem razão do lícito fruto da liberdade divina, e que somente pode ter aplicação despojando o homem de seus sentidos e reduzindo-o a um pedaço de madeira.

            Mas, por outra parte, não com menos diligência devemos fugir correndo da concupiscência da carne, a qual se não entra na razão transborda sem medida, e que, segundo temos exposto, também tem seus defensores, a quem sob pretexto de liberdade, seja permitindo tudo quanto deseja.

4. Em tudo, devemos contemplar o criador, e dar-lhe graças

            A primeira regra para refreá-la será: todos os bens que temos Deus os criou a fim de que o reconhecêssemos com sendo o autor deles e lhe demos graças por sua benignidade feita a nós. Pois, onde estará essa ação de graças, se comes tanto alimento ou bebes tanto vinho a ponto, que te embriagas e te inutilizas para servir a Deus e cumprir com os deveres de tua vocação? Como vais demonstrar teu reconhecimento a Deus, se a carne, incitada pela abundância excessiva comete torpezas abomináveis, infecta o entendimento com sua sujidade, até cegá-lo e impedí-lo de ver o que é honesto e reto? Como vamos dar graças a Deus, se usarmos nossas vestimentas com tal suntuosidade, que nos enchemos de arrogância e depreciamos os demais; se há nelas tal galanteria, que os converte em instrumentos de pecado? Como, digo eu, vamos reconhecer a Deus, se nosso entendimento está absorto em contemplar a magnificência de nossas vestes? Porque há muitos que de tal maneira empunham seus sentidos nos deleites, que seu entendimento está enterrado. Muitos se deleitam tanto com o mármore, o ouro e as pinturas, que ficam petrificados, convertidos em ouro, ou semelhantes às imagens pintadas. Há outros, que de tal modo o aroma da cozinha lhes arrebata e a suavidade de outros perfumes, que são incapazes de perceber qualquer odor espiritual. E o mesmo se pode dizer das demais coisas.

            É, portanto evidente, que esta consideração refreia até certo ponto a excessiva licença e o abuso dos dons de Deus, confirmando a regra de Paulo de não fazer caso dos desejos da carne; os quais se lhes damos indulgência, se excitam sem nenhuma medida. “...mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e nada disponhais para a carne no tocante às suas concupiscências.” (Romanos 13:14)

            A segunda regra:  

            Pois não há caminho mais seguro nem mais curto que o desprezo da vida presente e a meditação da mortalidade celestial. Porque daqui nascem duas regras:

            A primeira é que aqueles que desfrutam deste mundo, o façam como se não desfrutassem; os que se casam, como se não se casassem; os que compram como se não comprassem, como disse Paulo: “Isto, porém, vos digo, irmãos: o tempo se abrevia; o que resta é que não só os casados sejam como se não o fossem; mas também os que choram, como se não chorassem, e os que se alegram, como se no se alegrassem; e os que compram, como se nada possuíssem; e os que se utilizam desse mundo como se dele não usassem; porque a aparência desse mundo passa.” (I Coríntios 7:29-31).

            A segunda, que aprendamos a sublevar a pobreza com a mesma paz e paciência como se gozássemos de uma modera abundância.

a) Usemos deste mundo como se não usássemos dele

            Aquele que manda que usemos deste mundo como se não usássemos, não somente corta e suprime toda intemperança no comer e no beber, toda efeminação, ambição, soberba, falsidade e descontrole tanto na mesa quanto nas edificações e vestimentas; sendo que corrige também toda solicitude ou afeto que possa nos afastar de contemplar a vida celestial e de adornar nossa alma com seus atavios verdadeiros. Admirável é o dito de Catão, que onde há excessiva preocupação no vestir há grande descuido na virtude; como também era um provérbio comum dos antigos, que aqueles que se ocupam excessivamente do adorno do seu corpo apenas se preocupam de sua alma.

            Portanto, ainda que a liberdade dos fiéis referente às coisas externas não deve ser limitada por regras ou preceitos, entretanto deve regrar-se pelo princípio de que há que regular-se o menos possível; e, pelo contrário, que hão de estarem muito atentos para cortar toda futilidade, toda vã ostentação de abundância – que tão distantes devem está da intemperança! - , E guardarem-se diligentemente de converter em impedimentos as coisas que se lhes foram dadas para que lhes sirvam de ajuda.

b) Suportemos a pobreza; usemos moderadamente da abundância

            A outra regra é que aqueles que têm poucos recursos econômicos, devem sobrelevar com paciência sua pobreza, para que não se vejam atormentados pela inveja. Os que comportam-se desta forma, aproveitam muito da escola do Senhor. Pelo contrário, aquele que neste ponto não tem aprendido nada, dificilmente poderá provar que é discípulo de Cristo. Porque, à parte o apetite e o desejo das coisas terrenas vão acompanhados de outros vícios numerosos, sucede comumente acontecer que quem sofre a pobreza com impaciência mostra vício contrário na abundância. Quero dizer com isto que aquele que se envergonha de vestir-se pobremente, vangloriar-se-á de estar ricamente ataviado; que quem não contenta-se com uma mesa frugal, se atormentará desejando outra mais abundante/magnífica/suntuosa; não saberá conter-se nem saborear sobriamente das iguarias, se alguma vez participar de um banquete; aquele que com grande dificuldade e desassossego vive em uma condição humilde sem ofício e cargo algum público, não conseguirá abster-se de demonstrar sua arrogância e orgulho.

            Portanto, todos aqueles que sem hipocrisia desejam servir a Deus, aprendam, o exemplo do Apóstolo, a estar saciados bem como ter fome; aprendam a conduzir-se na necessidade e na abundância. “Tanto sei estar humilhado como também ser honrado, de tudo e em todas as circunstâncias, já tenho experiência, tanto de fartura como de fome, assim de abundância como de escassez.” (Filipenses 4:12)      

5. Somos administradores dos bens de Deus

            Ademais a escritura apresenta uma terceira regra, com a qual modera o uso das coisas terrenas. Falamos algo dela quando tratamos dos preceitos da caridade1. Nos ensina que todas as coisas nos são dadas pela benignidade de Deus e são destinadas a nosso bem e proveito de forma que constituem com um depósito daquilo que um dia teremos de dar conta. Temos, pois, de administrá-las como se continuamente ressoassem em nossos ouvidos aquela sentença: “Presta contas da tua mordomia” “Então, mandando-o chamar, lhe disse: Que é isto que ouço a teu respeito? Presta contas da tua administração, porque já não podes mais continuar nela.” (Lucas 16:2). E por sua vez temos de recordar quem há de ser aquele que nos pede tais contas; a saber, Aquele que tanto nos encarregou da abstinência, da sobriedade, da frugalidade e da modéstia, e que detesta todo excesso, soberba, ostentação e venalidade; que não aprova outra dispensação de bens e renda , que a regulada pela caridade; e que por sua própria boca tem condenado todos os regalos e deleites que afastam o coração do homem da castidade e da pureza, ou que entorpecem o entendimento.

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1 Institutas III,vii,5

6. Em todos os atos da vida devemos considerar nossa vocação

            Devemos finalmente observar com todo cuidado, que Deus manda que cada um de nós em tudo quanto fizermos devamos levar em consideração a vocação. Ele sabe muito bem quanta inquietude agita o coração do homem, que a rapidez o leva de um lado a outro, e quão ardente é sua ambição de abraçar de uma só vez muitas coisas.

            Por temor de que nós com nossa temeridade e loucura revolvamos tudo que há no mundo, ordenou a cada um aquilo que devia fazer. E para que ninguém passe temerariamente de seus limites, denominou a tais maneiras de viver, vocações. Cada um, pois, deve atentar-se a sua maneira de viver, como se fora uma estância na que o Senhor o colocou, para que não ande vagando de um lado para o outro sem propósito toda sua vida.

            Esta distinção é tão necessária, que todas nossas obras são estimadas diante de Deus por ela; e com freqüência de uma maneira muito distinta da que opinaria a razão humana e filosófica. O ato que até os filósofos reputam como o mais nobre e o mais excelente de todos quantos poderiam empreender, é libertar o mundo da tirania; por outro lado toda pessoa comum que atente contra a tirania está abertamente condenada por Deus. Porém, não quero deter-me em relatar todos os exemplos que se poderiam deduzir referentes a isto. Basta entender que a vocação a qual o Senhor nos tem chamado é como um princípio e fundamento para nos governar bem em todas as coisas, e que quem não se submete a ela jamais enxergará o reto caminho para cumprir com seu dever como se deve. Poderá fazer alguma vez algum ato digno de louvor em aparência; pois este ato, seja qual seja, e pensem os homens o que quiserem, diante do trono da majestade divina não encontrará aceitação e será reputado em nada.

            Enfim, se não temos presente nossa vocação como uma regra permanente, não poderá existir concórdia e correspondência alguma entre as diversas partes de nossa vida. Por conseguinte, irá muito ordenada e dirigida a vida daquele que não se afasta desta meta, porque nada se atreverá movido por sua temeridade, a intentar mais do que sua vocação lhe permite, sabendo perfeitamente que não lhe é lícito ir mais além dos seus próprios limites. O de condição humilde se contentará com sua simplicidade, e não sairá da vocação e do modo de viver que Deus lhe tem atribuído. Por sua vez, será um alívio, e grande, em suas preocupações, trabalhos e penalidades, saber que Deus é seu guia e seu condutor em todas as coisas. O magistrado se dedicará no desempenho de seu cargo com melhor vontade. O pai de família se esforçará por cumprir seus deveres. Resumindo, cada um dentro de seu modo de viver, suportará incômodos, angústias, pesares, se compreende que ninguém leva mais carga que aquela que Deus põe sobre seus ombros.

            Daqui brota um maravilhoso consolo: que não há obra alguma tão humilde e tão baixa, que não resplandeça diante de Deus, e seja muito preciosa em sua presença, que com a tal sirvamos a nossa vocação.

Fonte: Tradução das Institutas da Religião Cristã de João Calvino (Cap. X Pg. 552 Lv. III Tomo – I)